You are using an outdated browser. For a faster, safer browsing experience, upgrade for free today.

Notícias

NYT: como a indústria alimentícia viciou o Brasil em junk food

NYT: como a indústria alimentícia viciou o Brasil em junk food

Conforme perdem espaço nos países ricos, empresas promovem uma expansão agressiva nas nações em desenvolvimento, contribuindo para aumentar a obesidade e problemas de saúde

Uma reportagem produzida pelo jornal americano The New York Times analisou a “invasão” nos países em desenvolvimento de comidas consideradas pouco saudáveis — industrializadas ou processadas —, chamadas de “junk food”. A matéria aborda o caso do Brasil, mostrando como muitas das grandes empresas fabricantes deste tipo de produto estão expandindo seus negócios de forma agressiva, conseguindo ganhar mercado e vender mais, ao mesmo tempo em que perdem espaço nas nações ricas. A atuação desses conglomerados tem duas consequências diretas. A primeira é a geração de milhares de empregos, o que no caso brasileiro se deve ao sistema de venda porta a porta. A segunda consequência refere-se à saúde. A reportagem mostra como a obesidade e doenças como diabetes vêm se espalhando no país, por causa do aumento do consumo dos alimentos processados. É como se um novo tipo de desnutrição estivesse surgindo.

Antes de contar o caso especificamente brasileiro, o NYT destaca a “mudança radical” na forma como os alimentos são produzidos e consumidos em vários países do mundo. O jornal americano analisou registros de grandes empresas, relatórios dos governos, estudos epidemiológicos, bem como entrevistou nutricionistas e especialistas em saúde. A mudança nos hábitos alimentares é uma questão, sobretudo, de saúde pública — já que essas mudanças influenciam a incidência de doenças, como diabetes, problemas cardíacos e o aumento exponencial dos níveis de obesidade em regiões que, há dez anos, lutavam para combater a fome. Um dado alarmante para o qual o jornal chama atenção é que o número de obesos no mundo já superou o de pessoas com sobrepeso.

Pesquisa recente publicada no New England Journal of Medicine mostra que há mais de 700 milhões de obesos no mundo — deste total, 108 milhões são crianças. O estudo mostra que a obesidade dobrou em 73 países desde 1980, contribuindo para 4 milhões de mortes prematuras  As taxas de obesidade nos Estados Unidos, no Pacífico Sul e no Golfo Pérsico estão entre as mais altas do mundo — mais de um a cada quatro americanos está obeso. Mas a obesidade, definida como um índice de massa corpórea acima de 30, cresceu mais rapidamente nos últimos 30 anos nos países da América Latina, África e Ásia.

Isso não quer dizer, contudo, que a desnutrição tenha acabado. De forma geral, ela só mudou de forma. E este é o ponto que a reportagem busca evidenciar. “A disponibilidade crescente de alimentos altamente calóricos e pobres em nutrientes está gerando um novo tipo de desnutrição, caracterizada por um número cada vez maior de pessoas com sobrepeso que, ao mesmo tempo, tem uma nutrição precária”, analisa a reportagem.

Para completar o cenário, grandes empresas vem promovendo uma ampla mudança de estratégia na indústria alimentícia, entregando junk food e bebidas com elevado nível de açúcar nos “rincões mais isolados da América Latina, África e Ásia”. “Enquanto suas vendas caem nos países mais ricos, multinacionais como Nestlé, PepsiCo e General Mills, aumentam sua presença de forma acintosa nos países em desenvolvimento, comercializando seus produtos de forma tão ostensiva que chegam a modificar os hábitos alimentares tradicionais do Brasil, Gana e Índia”, diz a matéria.

Para muitos nutricionistas ouvidos pelo jornal, o aumento da obesidade está intrinsecamente ligado às vendas de alimentos industrializados, que cresceram 25% no mundo todo de 2011 a 2016, em comparação com 10% nos Estados Unidos, segundo dados da Euromonitor. Uma mudança ainda mais drástica ocorreu em relação aos refrigerantes: as vendas na América Latina dobraram desde 2000, ultrapassando o consumo na América do Norte em 2013, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O aumento também aparece no mercado de fast-food, que cresceu 30% no mundo entre 2011 e 2016.

Segundo o NYT, os executivos da Nestlé afirmam que seus produtos ajudaram a “diminuir a fome e a fornecer nutrientes essenciais”, e que ela vem buscando diminuir a quantidade de sal, gordura e açúcar de milhares de itens, para torná-los mais saudáveis. Nos últimos anos, 9 mil produtos foram modificados. O chefe de pesquisa e desenvolvimento da Nestlé, Sean Westcott, admitiu, porém, que a “obesidade foi um efeito colateral inesperado surgido depois que alimentos processados de baixo custo se tornaram mais acessíveis”.

Westcott também afirmou que parte deste problema se deve ao fato de que as pessoas têm uma tendência natural de comer demais quando podem comprar mais alimentos. Os mercados em desenvolvimento hoje são responsáveis por 42% das vendas da empresa. “Por um lado, a Nestlé é líder mundial em água e fórmulas para lactentes e em vários produtos lácteos”, disse Barry Popkin, professor de nutrição da Universidade da Carolina do Norte. “Por outro lado, eles estão indo para os rincões do Brasil vender balas.”

Reportagem do NYT sobre a invasão de junk food na alimentação das famílias brasileiras (Foto: Reprodução)

Brasil 
A reportagem alerta que muitas políticas de governo ajudaram a erradicar a fome no país. O desafio de nutrição, porém, parece ter se invertido: a taxa de obesidade do país quase dobrou, para 20%, e as pessoas com sobrepeso triplicaram, para 58%, na última década. A cada ano, 300 mil pessoas são diagnosticadas com diabetes tipo 2, uma doença relacionada à obesidade. Em entrevista ao NYT, Carlos A. Monteiro, professor de nutrição e saúde pública na Universidade de São Paulo, afirmou que o país vive uma guerra que separa de um lado os agricultores locais, com comidas naturais, e do outro, os produtores de alimentos ultraprocessados, feitos para serem consumidos em excesso, que são viciantes.

A reportagem fala em “habilidade política da indústria” deste setor que, em 2010, uniu-se em uma coalização de empresas de bebidas e alimentos e “destruiu uma série de medidas que buscavam limitar anúncios de junk food destinados a crianças”. Cita também que o presidente Michel Temer, “político favorável aos interesses empresariais” e seus aliados, impedem no Congresso Nacional o encaminhamento de várias regulações ou leis que visam a estimular uma alimentação mais saudável.

Os defensores dessa indústria afirmam que os alimentos processados são importantíssimos para alimentar uma população cada vez mais urbana que vê sua renda crescer — e busca justamente esse tipo de alimento. “Se eu pedisse para 100 famílias brasileiras que pararem de consumir alimentos processados, teria de me perguntar: o que elas comerão? Quem as alimentará? Quanto isso vai custar?”, questionou Mike Gibney, consultor da Nestlé.

A questão é que esse modelo gera profundas mudanças nas economias locais, defende a reportagem. “À medida que as multinacionais avançam nos países em desenvolvimento, elas alteram a agricultura local, estimulando agricultores a trocar as culturas de subsistência por commodities mais rentáveis, como cana-de-açúcar, milho e soja, que são justamente a base de muitos produtos alimentícios industrializados”, analisa. A instituição desse novo ecossistema econômico atrai lojas de família até grandes varejistas, pequenos distribuidores e pequenos vendedores.

Outra questão importante e inegável aqui é que esse ecossistema acaba gerando novas oportunidades de emprego para muitas pessoas — e no Brasil, reflete-se no sistema de venda “porta a porta”. A matéria cita o caso de alguns dos vendedores que integram o sistema, como Celene da Silva, de 29 anos. Ela é uma das milhares de vendedoras porta a porta que a Nestlé mantém no Brasil a fim de marcar presença em milhões de lares do país. Celena entrega pudim (Chandelle), chocolates (Kit-Kat) e outros alimentos embalados para seus clientes em um distrito de Fortaleza (CE).

Seus clientes, em grande parte, mostravam-se visivelmente acima do peso — mesmo as crianças pequenas. Celene relembra um ex-cliente, um homem obeso. “Ele comeu um pedaço de bolo e morreu enquanto dormia.” Mesmo ela, que pesa cerca de 100 kg, recentemente descobriu que sofre de hipertensão. Uma condição que, reconhece, deve estar ligada ao hábito de comer com frequência frango frito e tomar Coca-Cola — inclusive, no café da manhã.

Na região que Celena trabalha, muitas pessoas não têm acesso a supermercados. Ela defende que os produtos que vende são bons e mostra as informações nutricionais dos rótulos que indicam que o produto é rico em vitaminas e minerais. Com os cerca de R$ 570 por mês que ganha com a venda dos produtos Nestlé, conseguiu comprar uma geladeira nova, uma televisão e um fogão a gás para a casa de três quartos da família, que fica à beira de um manguezal. Em meio à crise, o programa de vendas porta a porta da empresa, que foi criado há uma década e atende 700 mil consumidores de baixa renda por mês, cresce 10% por ano, segundo a Nestlé. A queda da renda beneficia o modelo de vendas diretas e, em regiões como a de Celena, o Bolsa Família também ajuda a impulsionar as vendas das revendedoras.

Segundo a Nestlé, esse programa ajuda a criar “microempresários, que conseguem montar seu próprio negócio”. O catálogo de alimentos dessas revendedoras também inclui produtos mais saudáveis, como o Nesfit, um cereal integral; e iogurtes com baixo teor de gordura, como o Molico, que contém uma quantidade relativamente pequena de açúcar. Mas o que vende mesmo, segundo Celena, são os itens mais açucarados, como Kit-Kat e Chandelle.

A reportagem cita outros casos de pessoas e crianças sofrendo de de diabetes, hipertensão no distrito de Fortaleza. Naquelas ruas, porém, ninguém fala mal da Nestlé, vista como uma empresa de qualidade e geradora de oportunidades. “É difícil superestimar o poder econômico e o acesso político dos conglomerados de alimentos e bebidas, responsáveis por 10% da produção econômica do país e por empregar 1,6 milhão de pessoas”, afirma o NYT. Em paralelo, porém, a reportagem cita a influência desse conglomerado que doou quase R$ 500 milhões ao Congresso em 2014.

Dentro de casa, problemas sociais também afetam diretamente a alimentação das famílias e propiciam um mercado para os produtos dessas grandes empresas. Pais ocupados oferecem “aos filhos pequenos macarrão instantâneo e nuggets de frango congelados, refeições em geral acompanhadas de refrigerantes. Arroz, feijão, salada e carne grelhada, a base da dieta brasileira tradicional, estão sendo colocados de lado, segundo estudos”, diz a reportagem. O problema, segundo o NYT, é agravado pela violência evidente nas ruas, que mantém as crianças presas em casa.

Aproximadamente 9% das crianças brasileiras estavam obesas em 2015, um aumento de mais de 270% desde 1980, de acordo com um estudo recente do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde da Universidade de Washington. Isso coloca o país bem próximo dos Estados Unidos, onde 12,7% das crianças tinham obesidade em 2015.

*Confira aqui a reportagem na íntegra

Compartilhar:

Deixe seu Comentário

Atenção: Os comentários abaixo são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores e não representam, necessariamente, a opinião da AMUCC